Notícia extraída do site do Tribunal Superior do Trabalho:
“Ministro Alexandre Agra Belmonte fala sobre a liberdade de expressão no trabalho
(Domingo, 18 Novembro 2012, 10h)
Quais são os limites da liberdade de expressão no trabalho?
Agra Belmonte - Liberdade é o poder que uma pessoa tem de agir de acordo com sua própria determinação, expressar opiniôes, fazer escolhas, expressar sentimentos. Mas, dentro do ambiente de trabalho, a subordinação presente na prestação de serviço é um fator de limitação da liberdade, não tem como dizer que não. Até que ponto o poder empregatício pode limitar a liberdade? Aí começam os problemas. Para que se tenha uma ideia desse problema dentro de uma empresa, poderíamos citar várias situaçôes. Por exemplo, ofende a liberdade ideológica a despedida por justa causa de um empregado de uma fundação destinada a ajudar imigrantes e que, fora das suas atividades profissionais, preside um partido político hostil à presença de imigrantes no país? É uma coisa contraditória, ele não pode prestar um serviço incompatível com suas crenças. Neste caso, o empregador pode despedi-lo por absoluta incompatibilidade com o serviço. Outro exemplo: o trabalhador pode usar quipá ou turbante dentro do ambiente do trabalho?
Um exemplo concreto: um professor poderia se dizer favorável ao aborto e ao divórcio numa escola católica, por exemplo?
Agra Belmonte - Uma escola católica é o que chamamos de organização de tendência. Sendo assim, os pais matriculam os filhos porque querem que tenham aquele ensinamento. Se o ensinamento religioso faz parte do ambiente da escola, evidentemente que o professor tem de respeitar. Mas se for numa universidade, muda completamente a perspectiva. Embora seja católica e seja mantida com recursos da Igreja, ali não se ensina a religião, ou seja, já existe a autodeterminação dos alunos. Na escola, os alunos estão sob a tutela dos pais, e a escola é o veículo da orientação que eles querem.
Há pouco tempo tivemos um caso de um bispo de Guarulhos (SP) que queria proibir professores da PUC de falar sobre aborto em sala de aula. Segundo ele, isso fazia parte do contrato de trabalho.
Agra Belmonte - Essas são as chamadas cláusulas de restrição, limitadoras da liberdade, e sua validade é relativa. Por exemplo, um professor de matemática que externa sua opinião no intervalo de aula, e mesmo assim instado pelos alunos, não está ensinando. Se fosse um professor de religião, certamente seria despedido, pois estaria indo contra a doutrina que a escola tem por dogma. No caso do professor de matemática, ele manifestou livremente sua opinião, no que ele acreditava, e sua demissão seria discriminatória. A Lei 9.029/95 impede esse tipo de despedida, e ele poderia pedir reintegração ou indenização em dobro.
Que tipo de informação o empregador pode exigir do empregado?
Agra Belmonte - Seria interessante que existisse, como no código português, uma regulamentação sobre o direito à informação para admissão no trabalho, que não existe no Brasil - o que o empregado tem de informar, o que o empregador não pode exigir, e o que ele não pode dizer por ser aspecto de vida íntima. O empregado poderia dizer desde logo qual é a sua religião, e manifestar o desejo de folgar no dia dedicado por ela ao descanso, e a empresa se ajustaria a isso. Nada impediria que o judeu usasse o quipá no dia correspondente à sua fé.
Sem limites bem definidos, como a Justiça soluciona conflitos relativos à liberdade?
Agra Belmonte - Tudo parte em principio de uma lógica, mas muitas vezes a lógica acaba se transformando num "achômetro", que não corresponde a um critério científico. O que dispomos é do material jurídico próprio para resolver conflitos: usamos os princípios da proporcionalidade, verificamos na hipótese qual direito deve prevalecer, com base no princípio da razoabilidade. São critérios juridicamente importantes para resolução dos conflitos, que acabam correspondendo a uma lógica, que não é necessariamente a minha ou a sua. Isso é um critério seguro porque parte de um ponto de vista neutro.
Então, os direitos devem coexistir.
Agra Belmonte - Devem. O poder empregatício decorre da livre iniciativa, que é um direito fundamental, previsto na Constituição. Por outro lado, o direito fundamental do trabalhador de ter a sua liberdade também está previsto na Constituição. Então, não podemos negar a vigência da Constituição para dizer que o direito que vale é do empregador, ou o do empregado. O problema é fazer esses ajustes na situação concreta, quando estamos diante de um caso de possível abuso. Por exemplo, o empregado tem o direito de namorar uma colega que trabalha para o mesmo empregador, mas não tem o direito de ficar namorando ostensivamente nos corredores da empresa. O TST julgou há pouco tempo um caso bem interessante foi pedido a uma jornalista que entrevistasse um candidato político, ela fez a entrevista, e o empregador vetou a entrevista que foi feita. O problema não foi o veto, e sim o fato de ele ir para as rádios dizendo que a jornalista não tinha competência para aquilo. Era uma jornalista com 22 anos de profissão. Isso foi abuso por parte do empregador, que exerceu o poder empregatício sem observar limites. Na verdade, como são direitos de igual natureza, uma rua de mão dupla. O problema é encontrar no caso concreto o ajuste. E esse ajuste tentamos atingir a partir dos critérios da proporcionalidade e da razoabilidade.
A ideia de que "a minha liberdade termina onde a sua começa" não é uma concepção individualista?
Agra Belmonte - Sim, bastante individualista, e aí não se consegue traçar limite nenhum. O princípio da proporcionalidade, por exemplo, é um critério comparativo de direitos, que envolve ponderaçôes. Às vezes intensifica-se menos um direito e mais outro. Não que esse direito deixe de existir, mas, naquelas circunstâncias, é mais intensa a atuação de um determinado direito em detrimento de outro. Feito isso, precisamos verificar também se essa prevalência é uma prevalência razoável, que o critério da razoabilidade. Por exemplo, uma atendente de uma companhia aérea na Argentina se recusou a atender um passageiro que identificou como participante da ditadura na Argentina, onde esse sentimento é muito forte, e foi despedida. Ela ingressou com uma ação trabalhista pedindo indenização dispensa discriminatória, porque ela, seguindo sua liberdade de consciência, podia se recusar a atender aquele passageiro, mas perdeu. No segundo grau, o relator seguiu a mesma tese favorável à demissão, pois o atendimento ao passageiro é o que gera dinheiro para pagar o se salário. Um segundo juiz entendeu que ela poderia sim ter se recusado a atender o passageiro por motivos de consciência. O terceiro, que desempataria, ponderou os interesses: disse que ela tem realmente o direito de não atender o integrante da ditadura, mas deveria ter dado ao empregador uma alternativa, como pedir a um colega para atendê-lo em seu lugar ou levar o caso ao supervisor. A decisão do terceiro juiz, que acabou, por maioria, levando à improcedência da ação, expressa exatamente a técnica da atuação dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
Esse casos que envolvem questôes ideológicas são comuns?
Agra Belmonte - Há casos muito interessantes em relação à manifestação do pensamento, de empregadores que impedem que o empregado se manifeste política ou ideologicamente em determinado sentido. O empregador não pode proibir, a não ser que o empregado deixe de ser um ser integral, pois isso corresponderia a dizer que você pode ter suas convicçôes, suas crenças, tem liberdade de expressão, mas fora do trabalho. Ora, você é um ser integral no trabalho, em casa, na vida política, sempre. Apesar disso, a vida profissional exige certas limitaçôes, o que é natural.
Um dos casos que levantamos foi o de um rapaz que gravou um vídeo de sexo com a namorada. Esse vídeo vazou no canteiro de obra onde os dois trabalhavam e ele foi demitido por justa causa.
Agra Belmonte - Essa é outra questão: a repercussão dos atos privados na vida profissional. Normalmente, a regra é que os atos da vida privada não repercutem no trabalho, mas, mais uma vez, não se trata de regra geral. Por exemplo: uma apresentadora de um programa infantil que resolve fazer um filme erótico. O filme pornográfico é ato da vida privada, mas pode se tornar público a ponto de influir no contrato de trabalho dela como apresentadora, porque as duas coisas são incompatíveis.
Nessa época de redes sociais, como a Justiça do Trabalho vem enfrentando essas situaçôes em que espaços públicos e privados se sobrepôem?
Agra Belmonte - Sem dúvida passamos a ter mais veículos de comunicação e uma enorme eficiência no envio dessas comunicaçôes. Não vejo nada demais em relação às redes sociais, acho bem interessante, mas podemos manifestar nossas opiniôes desde que sejam respeitadas a imagem e a honra das pessoas. Nas redes sociais, a partir do momento que a pessoa escreve, coloca as fotos da família ou dos parentes, ela própria diminui a sua privacidade. Portanto, aquilo se torna público e pode ser utilizado de formas nem sempre previsíveis e controláveis.
E a discriminação estética?
Agra Belmonte - Eu me lembro do caso de um antigo jogador de futebol (Afonsinho, do Botafogo nos anos 60) que foi proibido de jogar por causa da barba. Ele preferiu insistir na situação e acabou tendo sua carreira abreviada. Se o problema da barba disser respeito à higiene, é válido que haja restriçôes, e isso pode até constar do contrato de trabalho, como no caso de um garçom. Fora dessas hipóteses, ele pode se apresentar do jeito que quiser, e o empregador não pode negar admissão a um trabalhador por causa de um piercing, por exemplo, ou a uma mulher grávida, ou a uma aeromoça com idade mais avançada.
O que o trabalhador pode fazer diante do cerceamento de sua liberdade pelo empregador?
Agra Belmonte - A composição de todas essas ofensas à liberdade do trabalhador, que não são poucas, se dá através da indenização por danos morais. Se houver discriminação, fica a opção para o trabalhador de pedir a reintegração ao emprego ou indenização em dobro, isso sem prejuízo do dano moral. E, fora dessas hipóteses, apenas a atuação dos danos morais. Nada impede também que o trabalhador peça a cessação daquele tipo de problema.
(Carmem Feijó e Ricardo Reis / RA - Fotos: Fellipe Sampaio)
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